30 de setembro de 2008

O meu homem

Miles/zefa/Corbis


Há mulheres que querem que
o seu homem seja o Sol.
O meu quero-o nuvem.

Há mulheres que falam
na voz do seu homem.

O meu que seja calado e eu,
nele, guarde meus silêncios.
Para ser a minha voz quando
Deus me pedir contas.

No resto, que tenha medo
e me deixe ser mulher,
mesmo que nem sempre sua.

Que ele seja homem em breves doses
Que exista em marés, no simples
ciclo das águas e dos ventos.
E, vez em quando, seja mulher,
tanto quanto eu.

As suas mãos as quero firmes
quando me despir.
Mas ainda mais quero
que ele me saiba vestir.
Como se eu mesma me vestisse
e ele fosse a mão da vaidade.

Mia Couto

O Fio das Missangas

26 de setembro de 2008

Chove...



 












Chove...

Mas isso que importa!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira


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22 de setembro de 2008

Quero...

Tomek Sikora/zefa/Corbis


Um regaço para chorar,
mas um regaço enorme, sem forma,
espaçoso como uma noite de verão, e
contudo próximo, quente, feminino,
ao pé de uma lareira qualquer.

um colo, um berço,
um braço quente
em torno do meu pescoço,
uma voz que cante baixo
e que pareça querer fazer-me
chorar.

um calor no inverno,
um extravio morno da minha
consciência.

e depois, sem som,
um sonho calmo,
um espaço enorme como a lua
rodando entre as estrelas.

Bernardo Soares

Livro do Desassossego






19 de setembro de 2008

Antes de te conhecer


 

















Era o teu rosto.
Era a tua pele.
Antes de te conhecer,
existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens
que olhava ao fim da tarde.
Muito longe de mim,
dentro de mim,
eras tu a claridade.

José Luis Peixoto



O resto é Veneza, Mahler, e um incrível
e triste, sentimento de beleza.

José Eduardo T. Leite

Imagem: J. Borodina


18 de setembro de 2008

Felicidade
















Se eu pudesse congelar o tempo,
escolheria este momento,
exatamente este,
nesta pouca hora
de um dia ensolarado.
O gerânio novo
enfeitando a prateleira,
o riso da criança
brilhando lá fora.
O livro aberto
no lugar certo,
que simplesmente diz
"Eu não tenho nada,
mas rouxinóis gorgolejam
versos na calçada."
É assim que se começa a ser feliz.

Flora Figueiredo



porque o dia de hoje esparramou-se
em alegrias e ocupou-me por inteiro.




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15 de setembro de 2008

Constatação
















O Nunca Mais não é verdade.
Há ilusões e assomos, há repentes
De perpetuar a duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tempo não.

Hilda Hilst
Cantares do sem nome e de partidas

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10 de setembro de 2008

Um único momento




















Achamos que a vida é uma sonata
que começa com o nascimento
e deve terminar com a velhice.
Mas isso está errado.
Vivemos no tempo, é bem verdade.
Mas, é a eternidade que dá sentido à vida.
Eternidade não é o tempo sem fim.
Tempo sem fim é insurportável.
Eternidade é o tempo completo,
esse tempo do qual a gente diz:
"Valeu a pena".

Compreendi, então, que a vida é uma sonata que,
para realizar a sua beleza, tem que ser tocada até o fim.
Dei-me conta, ao contrário,
de que a vida é um álbum de minissonatas.
Cada momento de beleza vivido e amado,
por efêmero que seja,
é uma experiência completa
que está destinada à eternidade.
Um único momento de beleza e amor
justifica a VIDA inteira.

Rubem Alves
Concerto para Corpo e Alma


Imagem: Alley Cat Productions-Brand/Corbis


8 de setembro de 2008

Asa presa




















O tormento de te amar é uma asa presa
que me detém num cubo de medo;
medo de que o amor eterno exista,
não caiba nas nossas vidas tão breves
ou não lhes resista.

Luminária


Imagem Mimmo Jodice/Corbis
Detail of Cupid and Psyche by Antonio Canova


5 de setembro de 2008

Sempre resta algo a dizer



















Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos
do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito
.

Albano Martins
Escrito a Vermelho

Imagem: Microzoa/ImageBank


4 de setembro de 2008

Separação














não houve culpados
só feridos.




Imagem: Natasha Guderman


1 de setembro de 2008

O primeiro olhar


 














Inventa a eternidade na simples
comoção de olhar uma estrela.
Basta que a olhes pela primeira vez,
depois de a teres olhado inúmeras vezes. 
E, então, não precisarás de nenhum Deus
que te ponha a mão no ombro e diga "estou aqui".
Uma estrela espera-te desde toda a eternidade.
Procura-a.
E vê se a não perdes durante a vida inteira.
A tua estrela pode não estar no céu.
Põe-na lá.

Vergilio Ferreira
Pensar





Imagem:Matthias Kulka/zefa